CULTOS AFRO-BRASILEIROS

05/11/2012 15:39

Cultos afro-brasileiros:

a busca de uma teologia pluralista.

       

          Autoria de frei Francisco van der Poel

 

 

PALAVRAS, LINGUAS, CONCEITOS, DOUTRINAS

 

    Como e quando surgiram as palavras e as linguas? ... Ei! Vai embora! Vem cá. Uma ameaça, um convite...  A lingua é uma forma da comunicação humana historicamente elaborada. Ao mesmo tempo a palavra é necessária na vida presente de todos nós. O verdadeiro significado dos conceitos usados tem como limite uma determinada cultura. Nossas palavras podem não ter o mesmo sentido em outra cultura. Tudo isso vale também para a própria palavra “pluralismo” que, para nós hoje, envolve a questão da mestiçagem e do sincretismo. Convém lembrar que culturas são dinâmicas e não estáticas. Uma análise deste assunto não permite superficialidade.

    Pluralismo, num sentido amplo, é o reconhecimento da diversidade. No mundo existem realidades independentes e mutuamente irredutíveis. Até mesmo indivíduos, apesar de solidários entre si, conservem a autonomia e a liberdade. Na modernidade e pós-modernidade, as ciências, artes e religiões começaram a mudar seus discursos e suas doutrinas. Importantes neste processo foram pesquisas históricas e o conhecimento amplo de outras culturas, através dos novos meios de comunicação. 

    Na filosofia atual, os conceitos secularismo, relativismo e pluralismo ganharam evidência. A propria verdade passou a ser definida como algo que se procura conhecer. Ficou claro que a verdade não começa com uma bela teoria memorizada. Sendo assim, pessoas responsáveis devem pensar por elas mesmas. Este deveria ser o primeiro objetivo da educação em casa e nas escolas. Vamos aprender a ficar satisfeitos com os caquinhos que alcançamos nesta busca contínua. A provisoriedade no pensar faz parte também do ensino religioso católico no qual o discurso único passou a ser questionado.

 

EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

 

    Sem um deus vivo qualquer religião ou culto perde o sentido. As teologias e os cultos surgem a partir da experiência religiosa vivida em comunidades de hoje e do passado. As religiões adquirem formas culturais diversas de acordo com a experiência religiosa de cada povo. O teólogo John Mbiti escreveu o livro “Os nomes de Deus na África.”[1] A obra revela como cada nome divino e respectivo culto correspondem à realidade atual e histórica de cada povo. Quase todos os cultos mencionados são monoteistas.

    Felizmente, a Bíblia sagrada não é um manual de teologia, mas um livro sagrado que relata a experiência religiosa de um povo. Ela contém histórias, provérbios, cantos, leis, profecias, cânticos e orações. O Deus vivo, que nele se revela, fundamenta a fé de judeus e de cristãos modernos. Seu conteúdo vai desde a criação do mundo até ao fim dos tempos. Este livro é, e sempre foi, normativo para judeus e cristãos, assim como a regra e a vida de São Francisco são normativas para os frades franciscanos. Leis e doutrinas, ritos e simbolismos são criados e renovados de acordo com as necessidades das comunidades. Um bom número de mandamentos, orações e rituais em uso hoje já constam da Bíblia e provam a fidelidade histórica da religião referida.

 

MAS, ... E AS OUTRAS RELIGIÕES?

 

    Quase todos os povos conhecem o mito da criação do mundo. Segundo as suas tradições escritas ou orais, um só Deus criou o mundo do nada, Isto várias religiões acreditam piamente. Nenhum ser humano estava presente para servir de testemunha. No candomblé iorubá, o divino criador é chamado “Olorum”, e no candomblé banto, tem o nome de “Nzambi”. Deus criou as forças da natureza. A criação é um mistério que não se refere apenas ao ato inicial (o primeiro chute) mas a algo contínuo que faz parte da experiência religiosa atual. Deus cria o mundo agora e sem ele nada existiria. O relato da criação do mundo é histórico na medida em que o texto também pretende falar do começo da história do mundo. Mitologia e história não podem ser separadas porque ambas falam da mesma realidade.

    O Criador divino se revela a quem Ele quiser. A experiência religiosa é uma graça recebida. A diversidade de mitologias revela que até mesmo o Deus absoluto e sem limites, no universo pluralista e humano, é finito; isto é, parcialmente conhecido. No diálogo entre as religiões, cada uma tem muito a apreender com as outras. Em Nova Iguaçu (RJ), o balorixá Marcos Palmares mantém um conjunto de dois terreiros: candomblé ("mais africano": iorubá e bantu) e umbanda ("mais brasileiro" com caboclos e pretos velhos), havendo cerimônias apropriadas em cada um. Ainda tem um cruzeiro das almas. Assim ele procura reunir valores reconhecíveis no Brasil.

 

FORÇAS DA NATUREZA

 

    Os candomblés iorubá, angola e jeje cultuam respectivamente orixás, inquices e voduns. São as forças da natureza personalizadas e associadas a elementos históricos/míticos das suas culturas. Nos candomblés, as forças da natureza, criaturas de Deus, se tornaram entidades religiosas. De modo comparável, na Bíblia (Dan, 3,57ss) as “potências dos céus” (montes, rios, rios e fontes, gelos e neves, as plantas) são invocadas para louvar ao Deus criador. Também o medieval São Francisco personifica as mesmas forças, chamando as de irmão sol, irmão vento, irmã água, irmã lua. Pensando bem, temos nos cultos afro brasileiros um aliado na luta pelo meio ambiente.

 

MUNDO VISÍVEL E INVISÍVEL

 

    Outro elemento constante nos cultos afro-brasileiros chama a nossa atenção: a divisão da realidade em um mundo visível e um mundo invisível que se encontram no mesmo lugar. Com isso, o Deus supremo, as forças da natureza e os antepassados estão perto de nós. O culto celebra o encontro do ser humano com o mundo invisível. Segundo o candomblé iorubá, os orixás vêm para dançar com seu povo durante o culto.  As mitologias elaboram esta relação. A teologia bíblica usa termos como aliança, encarnação; Deus vê os homens, anjos trazem mensagens, profetas falam em nome Dêle. O Cântico dos Cânticos compara esta relação a um namoro. E um antigo verso popular fala do mistério da encarnação: Como o sol pela vidraça/ entra e sai sem tocar nela/ Assim foi Nossa Senhora/ pariu e ficou donzela.// Hoje, a teologia católica tenta reformular o tradicional esquema: céu, inferno, purgatório e limbo. Talvez, o modo de entender a relação entre Deus e os homens, repartindo o mundo que habitamos em “visível e invisível”, possa empurrar a teologia para caminhos novos e menos complicados.

 

AMARRANDO AS PONTAS

 

    Nos tempos pós-modernos, padrões estabelecidos (morais, culturais, religiosos) passam a ser questionados e começam a ruir. Pensadores religiosos percebem que a verdadeira religião não necessariamente coincide com uma instituição. A verdade todos buscam. A provisóriedade salta aos olhos. Mas nem tudo é relativo. A busca da verdade pode unir as pessoas. Os vivos de hoje são responsáveis pela sociedade humana, pelo meio ambiente e pelo culto ao criador.

    Marco histórico nesta caminhada foi o dia de reflexão e oração pela paz no dia 27 de outubro de 2012, em Assis, convocado pelo papa Bento XVI. Esta vez participaram, além de líderes das grandes religiões, também agnósticos. No encerramento deste diálogo ecumênico e intercultural, o papa disse: “Não mais violência, não mais guerra, não mais terrorismo! Em nome de Deus, cada religião leve sobre a terra justiça, perdão, paz, vida e amor! - O primeiro dia de Assis, ousado e profético, aconteceu em 1986 a convite de Jõao Paulo II, o polonês.

    Por ocasião da sua viagem a Kampala (1970),  o  papa Paulo VI exortou o povo reunido a ser “Autenticamente cristãos e autenticamente africanos.” Valorizou assim a união na diversidade. 

    A verdade acontece...! Basta prestar atenção: olhando, cheirando, tocando, ouvindo. Nosso conhecimento começa sensorialmente.

 

    Eis algumas coisas que acontecem entre nós: ...

 

A via-sacra da Rocinha, no Rio de Janeiro, já existe há aprox. 20 anos. É encenada por 47 atores que residem na favela: vendedores ambulantes, operários, camelôs, garçons. Gente de todos os credos: "macumbeiro, ateu, católico e evangélico" diz René Garcia, da igreja batista. O importante é que "o espetáculo fala de Jesus. (...) Continuamos amigos, respeitando o pensamento de cada um". Seu fundador é o morador Aurélio Mesquita, e o público de seis mil pessoas em 2002, acompanhou a Paixão de Cristo desde o Largo do Boiadeiro, na entrada da Rocinha, até a parte alta da favela, um palco com 2 km de extensão. A peregrinação de Jesus carregando a cruz acontece também no meio do trânsito de ônibus e caminhões na Estrada da Gávea, e o sermão da montanha é feito da marquise de uma padaria. Jornal do Brasil. 28/03/2002. Caderno B, p. 1.

Outro exemplo de pluralismo religioso observamos quando Tancredo Neves, presidente civil eleito em 1985, estava para morrer de diverticulite e o povo brasileiro se uniu em oração. As contendas entre as diversas religiões e confissões desapareceram. Na frente do hospital, foram realizados cultos afro. Em todo o país, foram celebradas missas pela sua cura. Católicos ajoelhavam-se ao lado de espíritas. Cruzes de penitência, rezas do terço, sacrifícios para Oxalá, vigílias e esconjurações das más vibrações cósmicas eram expressões tão fortes do povo unido em prece pelo novo presidente e pela Nação que deixaram surpresos a todos.

Em 27 de novembro de 2011, no bairro Santa Tereza, no Rio de Janeiro, houve uma grande procissão ecumênica com a participação de muita gente com velas na mão, em memória do desastre dos bondinhos e a favor do bom funcionamento do mesmo meio de transporte tradicional naquele lugar.

Em outubro de 2011, no parque municipal de Belo Horizonte aconteceu a oração pela paz com participação de budistas (tibetanos), hara Krishna, judeus, espiritas, umbanda, candomblé banto, lutaranos, presbiteranos, anglicanos, católicos. Cada grupo manifestou-se à sua maneira. A mesma manifestação acanteceu em várias partes do mundo, a exemplo daquela que aconteceu em Assis por iniciativa do papa João Paulo II, em 1986.

 

ENCERRAMENTO

 

    No dia 12/02/2012, antes de participar de uma festa de candomblé banto em honra da inquice Dandalunda, em Mateus Leme (MG), a oração das matinas no meu breviário trouxe a leitura do Comentário sobre o Diatéssaron, de Santo Efrém diácono (séc.IV): “Que inteligência poderá penetrar uma só de vossas palavras, Senhor? Como sedentos a beber de uma fonte, ali deixamos sempre mais do que aproveitamos. A palavra de Deus, diante das diversas percepções dos discípulos, oferece  múltiplas facetas. O Senhor coloriu com muitos tons sua palavra. Assim quem quiser conhecê-la, pode nela contemplar aquilo que lhe agrada. Nela escondeu inúmeros tesouros, para que neles se enriqueçam todos os que a eles se aplicarem.”

Que a busca da Verdade nos una e que a paz reine entre as religiões.

 

P A Z   E   B E M !



[1] MBITI, S. John. Concepts of God in África. London: SPCK, 1970.

 

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